Ed Wanderley
DO DIARIODEPERNAMBUCO.COM.BR
Uma vida perdida e outra interrompida. No dia 10 de janeiro deste ano, José Alex Soares da Silva, 19, e Diego Pereira Cruz, 18, voltavam de um jogo de futebol na região do N-11, em Petrolina, no Sertão pernambucano, quando foram confundidos, no posto de gasolina “Paizão”, com uma dupla que tinha assaltado, minutos atrás, outro posto de combustíveis, o Umburuçu, ambos localizados na BR-428. José Alex morreu três dias depois do “mal entendido” em um leito de hospital, em decorrência dos ferimentos de uma sessão de espancamento pelo crime que não cometeu. A história de injustiça, violência e morte está narrada em inquérito policial que foi entregue nesta terça-feira (23) à Central de Inquéritos do Ministério Público de Pernambuco em Petrolina, e que pede o indiciamento de cinco suspeitos pelo crime de homicídio.
Diego Pereira Cruz também não escapou ileso da ignorância e fúria. Foi vítima de um espancamento no local e acusa os policiais militares que atenderam a ocorrência de continuarem a violência na delegacia para onde foi levado. Ao final das agressões, o rapaz ainda foi autuado em flagrante e encaminhado à penitenciária da cidade, onde passou 39 dias preso, até ser liberado pela Justiça. A suposta violência policial será investigada em um segundo inquérito, que será aberto esta semana, e pode indiciar três policiais militares de Pernambuco pelo crime de tortura.
Em dois meses de investigação, o delegado Jean Rockfeller, do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), através dos depoimentos colhidos, chegou à conclusão de que os jovens eram inocentes das acusações de assalto. Os verdadeiros assaltantes nunca foram encontrados.
O delegado não quis conceder entrevista, mas indiciou cinco pessoas pela injustiça. São elas: Maria Claudenice da Silva, 38 anos, dona do posto Umburuçu e que chegou ao posto Paizão gritando que José Alex e Diego eram os responsáveis pelo roubo; e mais Nilton César Ribeiro, Eliomar do Nascimento Lopes e Adriano Roberto da Silva, funcionários de Maria Claudenice, que teriam seguido a dupla e participado da sessão de espancamento. Todos vão respoder por lesão corporal seguida da morte de José Alex, e por lesão corporal de Diego Cruz.
O quinto indiciado é o bombeiro do 9º Batalhão do Corpo de Bombeiros da Polícia Militar da Bahia, Gracenildo Rodrigues dos Santos, 34, que vai responder por homicídio qualificado, e consumado, por motivo fútil. Ele foi um das vítimas do assalto ao posto Umburuçu e também seguiu Claudenice e seus funcionários até o posto Paizão, onde ocorreu o linchamento dos jovens. O bombeiro, inclusive, já responde por outro homicídio. O caso tem ainda um sexto envolvido, que não foi indiciado por ser menor de 18 anos. Uma cópia do inquérito será encaminhada à Vara da Infância e da Juventude para que a culpabilidade do adolescente seja verificada.
DIEGO
Crime e Castigo
Em uma noite de terror, a vida do estudante do segundo ano do Ensino Médio, Diego Pereira Cruz, 19 anos, virou de cabeça para baixo. Depois de torturado e preso injustamente, ele ainda foi indiciado por dois crimes de assalto, o do posto de gasolina e, para completar, o roubo a uma mercearia, de propriedade de Francisco José de Alcântara. Ele viu as reportagens sobre a prisão dos rapazes e foi à delegacia da cidade dizer que Diego e José Alex também tinham assaltado o seu estabelecimento, dias antes.
Na primeira audiência para apurar o assalto, na 1ª Vara Criminal da Comarca de Petrolina, Francisco José prestou depoimento e, durante seu depoimento, voltou atrás sobre ter reconhecido Diego pelo assalto à mercearia. Perante o juiz, ele afirmou que não desfez o “mal entendido” por “medo da reação da imprensa”. Em entrevista ao Diariodepernambuco.com.br, Francisco José disse que “tem certeza absoluta que não foram os dois jovens que assaltaram o seu estabelecimento”. “Os dois reais assaltantes voltaram à mercearia dias depois, quando Diego e José Alex já haviam sido apreendidos”, esclarece.
A terceira audiência que julga a culpabilidade de Diego Cruz nos assaltos será realizada nesta quarta-feira (24), mas o jovem e sua família só pensam agora no caminho que o indiciamento pelos espancamentos podem trazer aos acusados. Para eles, o castigo para os envolvidos nas sessões de terror nunca será suficiente. “Por mim, eles podem ir para a prisão, os policiais podem perder a farda, o que for. Mas o que eu quero mesmo é ver a dona do posto (Maria Claudenice) atrás das grades. Como pode a pessoa mentir, causar a morte de uma pessoa, transformar a nossa vida em um inferno e ficar por isso mesmo?”, protesta.
Diego, vítima do espancamento, e a mãe. Foto: Regina Lima/Esp.DP/D.A Press
Certeza - Procurada pela reportagem, Maria Claudenice da Silva voltou a alegar certeza absoluta sobre os responsáveis pelo assalto ao Posto Umburuçu. Ela afirma que "em nenhum momento os perdeu de vista e que os ladrões não poderiam ser outros". Maria Claudenice soube, pela nossa equipe, que foi indiciada por lesão corporal seguida de morte. "Eu não tenho nada a ver com isso. Não bati em ninguém", afirmou, categoricamente.
A árdua missão de encarar a realidade
Dor, tristeza e revolta. Essas três palavras fortes não são suficientes para resumir o sentimento da família de José Alex Soares da Silva, um jovem de 18 anos, funcionário de uma fábrica têxtil, que perdeu a vida confundido com um ladrão. “Minha mãe é outra pessoa desde a morte dele. Quando ela não chora o tempo inteiro, grita e xinga a polícia. Cada um vem se aguentando da maneira que pode”, detalha Andréia Soares da Silva, 22, irmã da vítima.
A família conta que reuniu 6.800 assinaturas em uma petição para cobrar celeridade na apuração do processo. Destas, 6 mil foram apenas de pessoas que compareceram ao velório do jovem. “Ele era uma pessoa querida e ninguém na comunidade João de Deus tem dúvidas do caráter e da inocência dele. Mataram um anjo sem saber”, lamenta Andréia.
Os pais de José Alex. Fotos: Regina Lima/Esp.DP/D.A Press
Ainda revoltado com o crime, o pai de José Alex, Manoel José da Silva, lembra do filho com orgulho e reclama da lentidão da justiça. “Em 19 anos, nunca trisquei (sic) a mão nele. Isso porque ele nunca mereceu. Aí vem alguém e se acha no direito de matá-lo com pancada? Só Deus mesmo. Só justiça divina”. O pai da vítima ainda questiona as ajudas prometidas e que, segundo ele, nunca chegaram. “Minha mulher já está quase louca e até agora não deram um comprimido sequer a ela. Não conseguimos médico e os direitos humanos, que prometeram auxiliar a gente, até hoje não apareceu por aqui”, denuncia.
OS POLICIAIS
Além dos cinco já indiciados pelo homicídio de José Alex e tentativa de homicídio contra Diego Cruz, mais três policiais militares pernambucanos podem ser punidos pelo “mal entendido”. Eles vão responder pelas sessões de espancamento de Diego, em um segundo inquérito que será aberto esta semana e que pode indiciar os oficiais por tortura. Se comprovadas as denúncias, o que de pior pode acontecer a eles é serem excluídos da corporação.
O delegado que concluiu os dois inquéritos de assalto (ao posto e à mercearia), Erlon Cícero, defende que qualquer outro colega teria autuado os jovens em flagrante. “Três ou quatro pessoas que se dizem vítimas afirmam que não tiraram os olhos dos suspeitos e que os assaltantes são aqueles que estão na sua frente. Chega outra suposta vítima dizendo que também foi assaltada por ele. Como você iria fugir e não lavrar o flagrante?”, justifica. Sobre as denúncias de espancamento que Diego Cruz teria sofrido, por volta das 3h do dia seguinte ao crime, o delegado é categórico: “Não vi nem ouvi nenhum movimento anormal durante o plantão”.
Caso as agressões tenham passado despercebidas, mas tenham realmente acontecido, os autores, que seriam policiais militares, podem pagar pelo crime com uma pena que varia de uma detenção até a exclusão da corporação. Isso vai depender do grau de gravidade interpretado pelos responsáveis pela apuração de um inquérito policial militar e do processo administrativo junto à Corregedoria.
De acordo com a assessora de imprensa da Secretaria de Defesa Social, Paula Cysneiros, independentemente do caso, a punição para um militar é diferenciada. “A exclusão é o máximo que eles podem pegar. Nesse caso, se o desligamento acontecesse antes da conclusão do inquérito da polícia civil, ele passaria a responder como civil, respondendo ao código penal. Caso contrário, ele seria julgado pela auditoria militar do Tribunal de Justiça e caberia, a quem fosse julgar, pedir ou não o desligamento”, explica.
NOITE DE TERROR
José Alex e Diego estavam no lugar errado, na hora errada. A bordo de uma moto, eles traziam nas mãos um saco de macaxeira, chuteiras e um capacete. Bem diferente de dois celulares, R$ 800 em dinheiro e um revólver que os verdadeiros assaltantes do posto Umburuçu deveriam estar portando no momento do roubo. Mesmo assim, Maria Claudenice esbanjava “certeza” de que eles eram os assaltantes e jurava que vinha seguindo a moto da dupla em uma caminhonete e que não tinha “desgrudado os olhos deles”.
Revoltados, seus funcionários e os clientes do posto iniciaram os espancamentos. Com a chegada da polícia, em vez de alívio, mais violência. Mesmo sem a localização da arma ou objetos do roubo, José Alex e Diego Cruz foram encaminhados à Delegacia de Ouro Preto, onde foram autuados, com base no depoimento de Claudenice e de outras “vítimas”. Durante o procedimento, puderam avisar às famílias. “Ele (José Alex) ligou para minha filha dizendo manda pai vir correndo até a delegacia, dentro de dez minutos, senão eles (policiais) me matam”, lembra o pai do jovem, Manoel José da Silva. “Ele pediu água e ganhou uma cotovelada na cabeça. Tentava falar com ele, mas ele já estava quase morto. Tive que implorar para que o levassem até o hospital”, completa.
No Hospital de Traumas de Petrolina, pouco se pôde fazer. José Alex passou três dias internado, respirando com o auxílio de aparelhos, até não resistir mais aos ferimentos. O local onde um dos jovens teve o fim da vida decretado foi onde supostamente os momentos de terror do amigo Diego tiveram início. “Dentro do hospital, os policiais me ameaçavam dizendo que eu tinha uma hora para começar a falar”, conta. De acordo com ele, o jogo do medo era arbitrado por três policiais militares, entre eles, uma mulher. A ideia era obrigá-lo a confessar o assalto e dizer onde estariam os objetos do roubo. “Me levaram a uma área chamada de pantanal, por ser próxima do rio, tiraram minhas roupas, colocaram um saco na minha cabeça e me bateram, me mandando mudar de história”, diz.
De volta à delegacia, as agressões teriam continuado no banheiro, com direito a simulação de afogamento com o rosto dentro de um vaso sanitário. A tortura só terminou quando Diego foi conduzido à penitenciária da cidade, onde passou seu aniversário de 19 anos e outros 38 dias encarcerado. No dia seguinte à notícia da morte de José Alex, mais tormento. “Dois policiais que não tinham participado do espancamento me visitaram na prisão. Disseram que se eu entregasse alguém, morreria”, relata.
Faixa pedindo justiça. Foto: Regina Lima/Esp.DP/D.A Press
Desesperada, a família do jovem procurou a proprietária do posto de combustíveis com uma foto dele em mãos. De acordo com Manoel José da Silva, a mulher admitiu não ter mais certeza de que seriam eles os assaltantes. “Quando fui perguntar sobre o motivo dele estar preso, ela mandou eu me retirar ou chamaria a polícia. Pior que, no mesmo dia do crime, enquanto meu filho era agredido, outro posto da região foi assaltado”, afirma.
A dúvida permaneceu para Maria Claudenice e para as outras testemunhas de acusação. Os depoimentos registrados na audiência realizada, no último dia 19 de fevereiro, foram marcados por contradições sobre quem estaria com a arma, quem pilotava a moto ou mesmo se houve disparos no local. A falta de provas consistentes, que atestassem a culpa do jovem, resultrou em um alvará de soltura para ele. O documento foi assinado pelo juiz Cícero Everaldo Ferreira Silva, da 1ª Vara de Criminal da Comarca de Petrolina, e cumprido no mesmo dia. “A pior parte de estar preso era saber que sou inocente. Nunca tinha passado por algo parecido”, desabafa Diego.
CRONOLOGIA
Dia 10/01/2010
Fim de tarde – Diego e José Alex participam de um torneio de futebol no NR-11.
19h10 - Uma amiga pede para que José Alex leve um saco de macaxeiras para seu pai, Manoel José da Silva.
19h42 - Os jovens voltam para casa, numa moto. Na BR-428, são trancados por uma caminhonete, mas seguem o trajeto.
19h46 - Ambos param no Posto Paizão para abastecer a motocicleta.
Posto onde ocorreu o assalto. Foto: Regina Lima/Esp.DP/D.A Press
19h50 – Os dois são acusados de assaltarem um posto de gasolina na mesma rodovia momentos antes, pela proprietária do estabelecimento roubado, Maria Claudenice da Silva. Pessoas que estavam no local começam a espancá-los no chão do posto.
20h - Policiais chegam e encaminham os dois à Delegacia de Ouro Preto.
Fachada da delegacia. Foto: Regina Lima/Esp.DP/D.A Press
Dia 11/01/2010
1h - José Alex dá entrada no Hospital de Traumas de Petrolina.
2h - Diego Cruz deixa o hospital com três policiais e alega ter sido espancado em um matagal que fica na área da unidade de saúde.
3h - Diego e policiais retornam à Delegacia de Ouro Preto.
3h30 - Jovem é espancado em uma das salas da delegacia.
4h15 - Diego é encaminhado à penitenciária da cidade.
Dia 13/01/2010
José Alex morre no hospital devido aos ferimentos.
Fachada do hospital de trauma. Foto: Regina Lima/Esp.DP/D.A Press
Dia 14/01/2010
Diego Cruz recebe visita de dois policiais na penitenciária. Eles o ameaçam de morte.
Dia 19/02/2010
8h - Primeira audiência na 1a Vara Criminal da Comarca de Petrolina.
15h - Diego recebe liberdade provisória.
Dia 18/03/2010
8h - Segunda audiência na 1a Vara Criminal da Comarca de Petrolina.
Dia 23/03/2010
10h - Entrega de inquérito com conclusões sobre o homicídio. Cinco pessoas são indiciadas: Maria Claudenice da Silva, Nilton César Ribeiro, Eliomar do Nascimento Lopes, Adriano Roberto da Silva e Gracenildo Rodrigues dos Santos.